terça-feira, 6 de novembro de 2012

Não tenho fome, tenho medo!

 Franklin Cunha *


 Edgar Allan Poe (1809-1849) nos conta a seguinte história em seu conto A Máscara Rubra da Morte:

“Quando a peste começou a dizimar os camponeses pobres nos domínios do Príncipe Próspero, ele convocou um milhar de amigos saudáveis e alegres entre os cavalheiros e damas de sua corte e com eles se retirou para um de seus castelos fortificados. Era uma ampla e imponente estrutura, criação do gosto excêntrico e majestoso do Príncipe. Fundiram os cadeados das portas de ferro para impedir entrada ou saída de qualquer pessoa e abarrotaram as despensas do castelo de tudo o que havia de melhor para comer, beber e divertir-se. Com tais precauções, os cortesãos julgavam que podiam se salvar da mortandade causada pela Peste Negra”.

O sociólogo alemão Ulrich Beck tornou-se um dos teóricos sociais mais destacados ao publicar seu livro A Sociedade de Risco.

O seu argumento central é de que a sociedade industrial, caracterizada pela grande produção e consumo de bens, foi substituída pela sociedade de risco, na qual a distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas típicas da primeira modernidade. O desenvolvimento da ciência e da técnica não pode mais dar conta da prevenção e controle dos riscos que gera, com consequências de alta gravidade para a saúde humana e para o meio ambiente, pois são inerentes ao processo de produção. Entre esses riscos, Beck inclui os ecológicos, químicos, nucleares e genéticos, produzidos industrialmente, justificados economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente. Ironicamente, pois, a mesma ciência que proporcionou tanto progresso à sociedade humana a está destruindo.

Recentemente, Beck incorporou também os riscos econômicos, como as quedas nos mercados bursáteis, as quebras de bancos, de empresas do mercado imobiliário, de fundos, de países inteiros; enfim, a financeirização da economia global. Esse conjunto de riscos geraria uma nova forma de capitalismo, uma nova forma de economia e de ordem globais, uma nova forma de sociedade e novas formas de vida (e de morte).

E a “peste” resultante desse arriscado estilo de vida é a crescente urbanização das populações, o aumento da pobreza e da violência citadinas, resultando disso a substituição de nossa impressão subjetiva de “não tenho fome” para “tenho medo”. E se há dúvidas sobre essas constatações, a encastelização generalizada das classes médias e altas – as que não têm fome – demonstra o evidente e permanente medo que as domina e imobiliza, enjauladas que estão dentro de seus domínios gradeados e vigiados por olhos eletrônicos e humanos que lhes propiciam uma tão procurada quanto ilusória segurança.

Há perigos por toda a parte e confiamos nos cientistas para evitá-los. E, como Beck observa, as ameaças atuais não são basicamente as naturais, mas geradas pela atividade humana impregnada de ciência, na indústria, nos transportes, no descontrole da biogenética, na produção e consumo de alimentos, na química das drogas, na tecnologia bélica. E quando os cientistas nos informam de que as maiores reservas mundiais de combustíveis fósseis ainda não exploradas estão situadas sob a calota de gelo do ártico, e quando esses mesmos cientistas não desenvolvem motores limpos que substituam os poluidores e pouco eficientes motores movidos a petróleo, nossos medo, insegurança e culpa aumentam exponencialmente ao vislumbrar as “pestes” que legaremos aos nossos filhos, as quais invadirão todos os “castelos” por mais fortificados que possam ser construídos.
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*Médico
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3941624.xml&template=3898.dwt&edition=20747&section=1012
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