domingo, 11 de novembro de 2012

Brinquedos de criança

Rubem Alves*

Guimarães Rosa tinha memórias ruins da sua infância: “Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada.

Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope e nem mesmo eu, ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta.

Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.! (Algumas de minhas distrações eram) armar alçapões para pegar sanhaços — e depois tornar a soltá-los. Que maravilha! Puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro, brinquedo saudoso; atrelar um sabugo branco com outro vermelho, e mais uma junta de bois pretos — sabugos enegrecidos pelo fogo.

Prender formiguinhas em ilhas, que eram pedras postas num tanque raso, e unidas por pauzinhos, pontes para as formiguinhas passar. Aproveitar um fiozinho d’água, que vinha do posto das lavadeiras, e mudar-lhes duas vezes por dia o curso, fazendo-o de Danúbio ou de São Francisco, ou de Sapakral-lar (velho nome inventado), com todas as curvas dos ditos, com as cidades marginais marcadas por grupos de pedrinhas, tudo isso sob o voo matinal das maritacas de Nhô Augusto Matraca, no quintal”.

De tudo que João Guimarães Rosa escreveu acho a estória do Miguilim a mais bonita. Miguilim era um menininho que vivia num lugar perdido do sertão, precisava andar um dia a cavalo prá se chegar no mais próximo. Mas Miguilim via um mundo embaçado e pensava que o mundo era assim. Não via o passarinho no galho da árvore e nem os brotos do milho saídos do chão.

Pai de Miguilim, bruto, achava que ele era burro. Desgostava. Batia. E no coração de Miguilim o ódio crescia. Mas um dia chegou um doutor montado em cavalo bonito e tratado. Estranhou que Miguilim fechasse os olhos prá ver melhor. “ - Esse nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...” E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. “ – Olha agora!” Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava.

Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...” Leiam e comparem, e vejam se o Miguilim não é o João. Os dois eram míopes sem saber. O espanto do Miguilim deve ter sido o espanto do João quando pôs os óculos pela primeira vez. E os dois brincavam com os mesmos brinquedos, até os boizinhos de sabugo, brancos, vermelhos e pretos, esses pretejados no fogo do fogão de lenha... Lendo o Miguilim aprendo sobre o João.

VELHO: O senhor Américo era um homem humilde, nascido na roça, religioso, que só tinha ouvidos para pachorrentos hinos de igreja. Pois, não sei como, aos 80 anos, quando já estava meio surdo, os seus ouvidos começaram a ouvir música clássica. Não é que ele nunca tivesse ouvido. Ouvira com o corpo, não ouvira com a alma. Mas, de repente, a alma começou a ouvir e a vida do senhor Américo se transformou. Ficou assombrado, inundado de alegria, e passou o resto da sua vida, até sua morte aos 92 anos, colecionando e ouvindo discos de música clássica.
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* Teólogo. Educador. Cronista. Escritor.
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/11/09
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