sexta-feira, 9 de novembro de 2012

''A experiência de fé não parte das doutrinas''.

Entrevista com Vito Mancuso

"Não conheço ninguém que tenha tido uma 
experiência de fé a partir dos livros, 
a partir das doutrinas, e, se alguém diz isso, 
não se trata de experiência de fé 
como a que o Novo Testamento nos refere. 
Foi o próprio Papa Bento XVI que disse 
que a experiência cristã se baseia no encontro.
 Isso vale para todos."


A afirmação é do teólogo italiano Vito Mancuso, em entrevista a Giuliano Ligabue, publicada na revista italiana Confronti, de novembro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Professor Mancuso, atualmente você está dirigindo a coleção teológica "Campo dei Fiori", com a editora Fazi. Quais são as razões que motivaram essa iniciativa e quais perspectivas se preanunciam?


As razões foram as de fazer com que a Itália pudesse ter uma coleção de pesquisa teológica livre das pressões eclesiásticas e, assim, em certo sentido, instituímos a primeira coleção de livre pesquisa teológica. As perspectivas? Depende de como o mercado andar. Eu diria que, no que se refere a esses dois primeiros anos de vida, estamos muito contentes: a coleção funciona, já tem os seus leitores fiéis. Veremos, portanto. Mas o que eu quero insistir é o fato de ligar a dimensão da laicidade à dimensão da teologia fora também apenas do setor acadêmico, porque a Biblioteca de Teologia Contemporânea da Queriniana é uma biblioteca que existe há décadas na Itália como coleção teológica, mas não consegue – por uma série de motivos ou porque não quer – ir além do âmbito acadêmico: os livros são muito grandes e custam muito. Nós, ao invés, com essa coleção, pretendemos alcançar o que se pode definir genericamente como grande público e também entrar no mercado secular, não somente dentro do circuito religioso tradicional.

Em muitos lugares – nas Igrejas locais assim como nos grupos cristãos e nas comunidades de base, nos círculos teológicos – levantam-se vozes que pedem cada vez mais insistentemente reformas profundas na Igreja Católica Romana. Ao mesmo tempo, e cada vez em mais partes – na cúpula assim como na base – estão sendo celebrados os 50 anos do início do Vaticano II. Mas, em sua opinião, este é um tempo e um lugar em que a herança do Concílio pode se tornar uma resposta às tantas vozes de reforma?

Eu não sou o único a dizer que aquele fogo de esperança que se acendeu há 50 anos no início do Vaticano II, hoje, se não está apagado, está prestes a se apagar. Isso é simplesmente um dado de fato. O Sínodo dos Bispos que celebrado nestes dias (de 7 a 28 de outubro) – e eu não gostaria de ser um profeta como João XXIII – certamente não me parece que possa gerar aberturas. A realidade é que nos encontramos em uma situação contingente de extremo fechamento. Acima de tudo, o que falta é a vontade de chamar os problemas pelo nome dentro da hierarquia.
Em certo sentido – com a perspectiva de sempre pela qual, se os problemas da fé existem, sempre é culpa do mundo, sempre é culpa dos outros, isto é, aquela perspectiva pré-conciliar que havia governado a Igreja substancialmente desde o Concílio de Trento até meados dos anos 1960, e que encontrou o seu auge no Sílabo de Pio IX –, essa perspectiva, a partir do pontificado de João Paulo II e agora do de Bento XVI, voltou a ser de extrema atualidade. Diz-se que os problemas existem, mas são sempre culpa dos outros, do mundo que não entende, do relativismo, da cultura secularizada: não se dá, ao contrário, aquele passo absolutamente decisivo para compreender que, se há problemas em uma relação - e os problemas existem na relação Igreja-mundo – ambos os sujeitos não podem não ser postos em causa.

No início de junho passado, a mídia veiculava a notícia de um Bento XVI que "se abriu aos divorciados em segunda união". Na realidade, embora tenha afirmado que eles "estão na Igreja", o pontífice voltou a reiterar a sua exclusão da Eucaristia. Como você avalia a posição do papa e qual você acha que pode ser uma possível solução para o problema dos divorciados em segunda união?

O papa, afirmando que os divorciados em segunda união "estão na Igreja", nada mais fez do que reiterar o que todos sabemos: ninguém os excomungou. O fato de que não podem aceder à comunhão não significa uma "excomunhão", um estar fora da comunidade: significa impor-lhes um status de não plena comunhão, de não perfeita comunhão. Portanto, é claro que eles estão na Igreja. A realidade é que a situação é tão crítica que até essa declaração, que só manifesta uma evidência, pareceu uma abertura quando, na realidade, não é uma abertura.
O que dizer senão reiterar o que, à sua época, Martini já dizia – até a última entrevista –, isto é, que o problema dos divorciados em segunda união, e mais em geral o problema da administração dos sacramentos, deveria ser a primeira questão a ser abordada e resolvida. Trata-se de passar da lógica da administração dos sacramentos, como forma de poder, a uma verdadeira forma de comunhão e de encorajamento para a vida das pessoas. Nessa perspectiva, mudando essa mentalidade de entender o sacramento e a relação Igreja-sacramento, é totalmente evidente que cai a proibição de aceder ao sacramento para os divorciados em segunda união.

Passo a um assunto mais direto e pessoal como o seu recente livro Io e Dio. Você afirma que – antes ainda das reservas sobre os conteúdos dogmáticos da doutrina católica – você tem reservas sobre o "modelo de fé" proposto por essa doutrina. Mas há uma compatibilidade entre o modelo de fé descrito por você e a tradição católica?

A tradição católica é uma coisa que – retomando Aristóteles, quando falava do ser que se diz de muitos modos – existe em vários modos: não existe "a" tradição católica, mas há diversas tradições. Lembro o ensaio de Yves Congar, A tradição e as tradições. É claro que, segundo uma determinada tradição – a que se impôs à doutrina católica a partir do Concílio de Trento –, entre essa sistematização e o meu modo de entender a fé, há pouca ou nenhuma semelhança. Se olharmos qual é a verdadeira tradição católica, ou seja, a tradição dos inícios, das origens, a tradição bíblica e também a tradição dos Padres da Igreja, veremos como a pluralidade das fontes é, desde o início, um índice de uma verdadeira pluralidade de abordagem à mensagem cristã. Portanto, o que eu defendo, com o fato de que a dialética e a liberdade crítica devem ser desde o início parte do status do ser católico, está mais do que nunca conaturalizado com a própria fonte do catolicismo e do cristianismo.

Ainda sobre Io e Dio: ali se declara a intenção de querer reescrever uma teologia fundamental, os fundamentos da fé, isto é, as condições do discurso sobre Deus. Nesse contexto, você se apresenta com uma experimentação que deve se atribuir não tanto a vozes autorizadas ou à Bíblia ou ao Jesus da história ou da teologia, mas sim a testemunhos de fé, isto é, ao fato de "ter conhecido homens espirituais". Pode indicar alguns ou um desses homens espirituais na origem da sua experiência de fé?

Penso que isso vale para todos. Não conheço ninguém que tenha tido uma experiência de fé a partir dos livros, a partir das doutrinas, e, se alguém diz isso, não se trata de experiência de fé como a que o Novo Testamento nos refere. Foi o próprio Papa Bento XVI que disse que a experiência cristã se baseia no encontro. Isso vale para todos: para todos os verdadeiros fiéis, para todas as pessoas que falam da fé como de uma dimensão concreta. Parte-se de uma experiência, parte-se de um encontro. Dito isso, no que se refere a mim, o nome que me vem à mente e espontaneamente nos lábios é o do cardeal Martini.
Eu não tinha nem 18 anos – eu tinha 17 – quando o encontrei justamente aqui em Roma, no pátio da Universidade Gregoriana, juntamente com muitos outros vindos de Milão com um trem especial organizado pela diocese para saudar, antes ainda de que ele entrasse na diocese, o nosso novo arcebispo. Desde então, para mim, Martini e o seu ministério permaneceram como um ponto imprescindível: a partir da dimensão contemplativa da vida, que foi o título da sua primeira carta pastoral, até a última entrevista ao jornal Corriere della Sera, publicada no dia seguinte à sua morte, 1º de setembro de 2011.

A última pergunta refere-se justamente ao cardeal Martini. Considerando que você se define como seu "discípulo", como efetivamente foi e é, qual você considera – entre os ensinamentos de Martini – o que mais o moldou de forma rica e harmoniosa?

É o método, o método de leitura da vida. O cardeal Martini foi acima de tudo um grande crítico textual, um grande exegeta: portanto, ele ensinou a ler a Bíblia. Mas, a partir da leitura da Bíblia, Martini, como arcebispo de Milão, ensinou a ler a realidade, a ler a vida concreta. A "lectio divina" de Martini se transformou em um método com o qual enfrentar a vida, um método de leitura – diria quase desencantada – do real, um método de leitura analítica, fria e que, ao mesmo tempo, é portadora de uma esperança, de uma dimensão performativa: eu leio a realidade, principalmente a realidade do fenômeno humano, acima de tudo pelo que ela é.
Em segundo lugar, acrescento à realidade como ela se apresenta uma dose de esperança, suscitando no fenômeno humano que eu leio a vontade de reagir a essa esperança, de se pôr em jogo, de se pôr a caminho. A partir desse cruzamento entre vontade de leitura analítica e, ao mesmo tempo, de inserção de esperança, nasce aquela capacidade de ler a realidade que eu aprendi com Martini: da sua maneira de se aproximar das fábricas, de abordar o terrorismo, de se aproximar da dimensão dos imigrantes, a dimensão do diálogo total com a sociedade. Efetivamente, ele conseguiu praticar e ensinar àqueles que o seguiram uma "lectio divina" do real.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/09/11/2012

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