Leonardo Neiva
Trecho de livro
Pouco após a morte da mãe e todos os trâmites relacionados a ela
— do inventário dos poucos pertences no hospital onde ficou internada à
compra de flores e ao enterro em si —, Annie Ernaux começou a escrever.
“Minha mãe morreu na segunda-feira”, narra logo na primeira linha de
“Uma Mulher” (Fósforo, 2024), último livro da escritora francesa
vencedora do Nobel a aportar aqui no Brasil. Mais tarde, ela admite na
própria obra que levou três semanas para superar o terror de se ver
botando essas poucas palavras no topo de uma folha em branco.
Assim como no aclamado “O Lugar” (Fósforo, 2021), onde recompôs a
vida e a trajetória do pai, aqui Ernaux dá tratamento semelhante à
história da mãe, “a única mulher que realmente importou para mim” e que
“estava demente havia dois anos”. Continuando sua jornada pela
autossociobiografia, gênero que fundou e que ajudou a consagrá-la, a
autora explica que, embora, para ela, a mãe não tenha história própria,
já que sempre esteve ali, o livro busca retratar a mulher real, num
registro familiar e social, mítico e histórico, literário mas também
abaixo da literatura.
Assim como em obras anteriores, a escritora parte de uma linguagem
aparentemente neutra e do estilo conciso mas pungente ao qual seus
leitores já estão acostumados. Com isso vai reunindo as peças que
compõem essa mulher da classe operária, da adolescência à velhice e
viuvez, quando a convivência com a filha escancara o distanciamento
gerado pela ascensão social desta. O luto pela perda materna também se
infiltra de maneira irremediável na narrativa, transformando a escrita
ocasionalmente seca de Ernaux numa avalanche de memórias pessoais por
vezes alegres, por vezes profundamente dolorosas, mas nunca
indiferentes.
Na semana seguinte, passei a chorar em qualquer lugar. Ao acordar,
sabia que minha mãe estava morta. Tinha sonhos pesados, mas não me
lembrava de nada, apenas que ela estava neles, e morta. Eu não fazia
nada além do necessário para viver, compras, comida, roupa na máquina de
lavar. Muitas vezes esquecia a sequência de cada coisa, depois de
descascar os legumes eu parava, só emendando o gesto seguinte — lavar os
alimentos — depois de um esforço de reflexão. Ler era impossível. Uma
vez, desci ao porão e a mala da minha mãe estava lá, com a carteira
dela, uma bolsa colorida e lenços dentro. Fiquei prostrada diante da
mala aberta. Quando me encontrava fora de casa, na cidade, era
pior. Estava dirigindo e, de repente: “ela nunca mais estará em lugar
nenhum do mundo”. Não conseguia mais entender o modo como as
pessoas se comportavam, a atenção minuciosa no açougue, quando escolhiam
determinado corte de carne, era para mim um horror.
Pouco a pouco esse estado vai desaparecendo. Ainda sinto uma
satisfação ao perceber que o tempo continua frio e chuvoso, como no
início do mês, quando minha mãe estava viva. E instantes de vazio a cada
vez em que eu constato “não vale mais a pena” ou “não preciso mais”
(fazer isso ou aquilo por ela). Alguns pensamentos deixam um buraco em
mim: pela primeira vez, ela não vai ver a primavera. (Sentir a partir de
agora a força das frases comuns e até mesmo dos clichês.)
Amanhã completam-se três semanas do dia do enterro. Só
anteontem consegui superar o terror de escrever no alto de uma folha em
branco, como o começo de um livro, e não de uma carta a alguém, “minha
mãe morreu”. Também consegui olhar algumas de suas fotos. Numa
delas, à beira do Sena, ela estava sentada com as pernas dobradas. É uma
imagem em preto e branco, mas é como se eu visse os cabelos ruivos
dela, os reflexos de seu blazer de alpaca preta.
Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta
Vou continuar escrevendo sobre a minha mãe. Ela é a única
mulher que realmente importou para mim e estava demente havia dois anos.
Talvez eu devesse esperar que a doença e a morte dela se dissolvessem
no percurso passado da minha vida, como os outros acontecimentos, a
morte do meu pai e a minha separação, de modo que eu pudesse ganhar a
distância que facilita a análise das lembranças. Mas nesse momento não
sou capaz de fazer outra coisa.
É uma empreitada difícil. Para mim, minha mãe não tem história. Ela
sempre esteve aqui. Ao falar dela, meu primeiro movimento é fixá-la em
imagens que não trazem uma dimensão temporal: “ela era agressiva”, “era
uma mulher muito intensa”, e evocar de modo desordenado cenas em que ela
aparecia. Assim, só encontro a mulher do meu imaginário, a mesma que,
há alguns dias, em meus sonhos, vejo outra vez viva, sem idade definida,
num ambiente de tensão que lembra filmes angustiantes. Gostaria
de capturar também a mulher que existiu fora de mim, a mulher real,
nascida num bairro rural de um vilarejo na Normandia e falecida na
unidade geriátrica de um hospital no subúrbio de Paris. O que
eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação
entre o familiar e o social, o mito e a história. Meu projeto é de
natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe
que só pode ser alcançada por meio das palavras. (Ou seja, nem as fotos,
nem minhas lembranças, nem os testemunhos da família podem me dar esta
verdade.) Mas quero permanecer, de certa forma, abaixo da literatura.
Yvetot é uma cidade fria, construída sobre um planalto exposto ao
vento, entre Rouen e o Havre. No começo do século, era o centro
comercial e administrativo de uma região totalmente agrícola e ficava
nas mãos de grandes proprietários. Meu avô, carroceiro numa fazenda, e
minha avó, que trabalhava em casa como tecelã, se instalaram ali alguns
anos depois de se casarem. Os dois vinham de um vilarejo vizinho, a três
quilômetros dali. Alugaram uma casinha com pátio, do outro lado da
estrada de ferro, na periferia, uma zona rural de limites indefinidos,
entre os últimos bares perto da estação e as primeiras plantações de
colza. Minha mãe nasceu lá, em 1906, a quarta de seis filhos. (Ela tinha orgulho em dizer: “eu não nasci no campo”.)
Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui.
- Uma Mulher
- Annie Ernaux (trad. Marília Garcia)
- Fósforo
- 64 páginas
Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/cultura/trecho-de-livro/uma-mulher/?utm_medium=Email&utm_source=NLGama&utm_campaign=MelhorGama 19/04/2024